“Deus, onde estás?”: o sofrimento humano e a resposta de Deus


Há tempos, desde a queda no Éden, o homem convive com o sofrimento que a corrupção humana trouxe. Quando as guerras explodem e acabam com tantas vidas inocentes, quando as doenças lentamente dilaceram por dentro e por fora milhares de pessoas ao redor do mundo, quando crimes hediondos são executados e chocam todo o globo, quando genocídios são cometidos e a dignidade humana simplesmente some com a fumaça dos bombardeios, quando um fenômeno natural inesperadamente acaba com qualquer fagulha de esperança, existe uma pergunta gritante que sempre retorna aos nossos ouvidos. “Onde Deus está?”, esta é a pergunta do sobrevivente. É a pergunta daquele que por pouco também não morreu, é a pergunta de quem preferia ter morrido, do ferido, de quem só ficou com o luto, de quem conseguiu emergir à muito custo dos escombros, é a pergunta de quem está com o coração espatifado pelo chão e a mente esmagada pelo infortúnio. Muitas vezes, é a pergunta de quem não foi afetado diretamente, mas que no auge da impotência observa a calamidade.

O que fazer diante deste questionamento e como lidar com a dor do outro? A respeito do sofrimento escreveram muitos poetas, filósofos, teólogos e pensadores, buscando respostas para questões inquietantes e difíceis de encarar. A verdade é que sempre procuramos um motivo para o nosso sofrimento, algo que justifique a nossa dor e não é diferente quando se trata de outrem. De fato, o gosto amargo do sofrimento pode ser consequência de algo específico, mas e quando não há um motivo aparente? O pecado entrou no mundo e desde então estamos sujeitos a males incalculáveis por causa da nossa própria depravação, contudo, como cristãos temos ciência de que a poderosa mão do Senhor governa todas as coisas ainda que aos nossos olhos tudo pareça ruir.

Apesar de entendermos e confiarmos na soberania de Deus, diante do torpor e do fel da amargura, nossa fé costuma se abalar. Também somos mais rápidos para fazermos pré-julgamentos do que para chorar com os que choram, talvez, na ânsia que temos por entender o problema, seja mais fácil simplesmente procurar uma causa para a dor do que sentir a dor do outro. Muitas vezes oferecemos consolo com frases prontas que mais atrapalham do que ajudam, mas o nosso auxílio e presença amorosa pode ser mais eficaz para falar a um coração que se sente desamparado.

Ainda que o sofrimento exista, a resposta certeira e que parece não ser suficiente para muitos é que Deus não nos abandonou, Ele não estava ocupado demais quando o pior aconteceu. Deus não tem muitos problemas para resolver e por isso esqueceu de alguns. Deus não dormiu, Deus não vacilou. Deus não está ignorando nada, Deus não é uma figura carrasca que observa inerte a nossa desgraça. Deus sofre conosco.

Antes que você arregale os olhos com a última afirmação, é importante lembrar que não estou negando a impassibilidade divina. Alguns teólogos entendem a impassibilidade como um atributo que significa que Deus não tem paixões nem emoções. Outros, não entendem a impassibilidade exatamente como atributo divino, visto que Deus nunca é objeto passivo da ação de outro, mas sofre com as dores e compartilha as alegrias da criação, assim, embora seja compassivo para com a criação, não se torna objeto passivo da atividade da criação.   De fato, Deus não muda e não possui sentimentos humanos oscilantes. Wayne Grudem afirma:

“Obviamente Deus não tem paixões ou emoções pecaminosas. Mas a ideia de que Deus não tem nenhuma paixão ou emoção está nitidamente em conflito com boa parte das Escrituras[...]Deus, que é a origem das nossas emoções e que de fato as criou, certamente também sente emoções. Deus se alegra (Is. 62.5). Ele se entristece (Sl 78.40); o seu furor arde contra os seus inimigos (Ex. 32.10). Compadece-se dos seus filhos (Sl 103.13). Ama com amor perene (Is 54.8). É um Deus cujas paixões devemos imitar para toda a eternidade, quando nós, como nosso Criador, odiarmos o pecado e nos alegrarmos na justiça.” ¹

É verdade que muitos dos termos utilizados nos versículos citados por Grudem são considerados antropopatismos, ou seja, a atribuição de sentimentos humanos a Deus. Muitas verdades sobre Deus não podem ser expressas na limitação da nossa linguagem e por isso este recurso é empregado. No entanto, essas figuras de linguagem estão repletas de significado, também nos fazendo entender que Deus não está alheio à sua criação.

Deus encarnado, diante de situações difíceis em que o sofrimento, a perda e a dor afligiam pessoas, agiu de forma amorosa e compassiva. Jesus se compadeceu de uma viúva prestes a enterrar seu único filho, Ele chorou a morte de um amigo, Ele se importou com um endemoninhado que valia menos que os porcos para os moradores da sua região. Ele não usou apenas palavras de consolo, mas Ele mesmo é a própria Palavra, o verbo que se fez carne e fez morada entre nós. Jesus é a maior prova de que Deus nunca nos abandonou. 

Na cruz, a caricatura de um Deus observador que assiste o desespero humano sentado do seu trono é desfeita. Deus em Cristo conhece de perto o sofrimento.  Por isso, quando não houver nenhuma resposta, quando a dor parecer maior que tudo, o sofrimento atropelar violentamente nossa realidade e apenas nos restar a declaração do salmista: “Desperta, Senhor! Por que dormes?” (Sl 44.23), que os nossos olhos se voltem para o madeiro.

John Stott, em seu livro “A cruz de Cristo”, ilustra o que tenho mencionado com uma pequena peça de teatro intitulada de "O Longo Silêncio":

No fim dos tempos, bilhões de pessoas estavam espalhadas numa grande planície perante o trono de Deus. A maioria fugia da luz brilhante que se lhes apresentava pela frente. Mas alguns grupos falavam animadamente — não com vergonha abjeta, mas com beligerância. "Pode Deus julgar-nos? Como pode ele saber acerca do sofrimento?" perguntou uma impertinente jovem de cabelos negros. Ela rasgou a manga da blusa e mostrou um número que lhe fora tatuado num acampamento de concentração nazista. "Nós suportamos terror. . . espancamentos. . . tortura. . . morte!" Em outro grupo um rapaz negro abaixou o colarinho. "E que dizer disto?" exigiu ele, mostrando uma horrível queimadura de corda. "Linchado. . . pelo único crime de ser preto! "Em outra multidão, uma colegial grávida, de olhos malcriados. "Por que devo sofrer?", murmurou ela. "Não foi culpa minha." Por toda a planície havia centenas de grupos como esses.
Cada um deles tinha uma reclamação contra Deus por causa do mal e do sofrimento que ele havia permitido no seu mundo. Quão feliz era Deus por viver no céu onde tudo era doçura e luz, onde não havia choro nem medo, nem fome nem ódio. O que sabia Deus acerca de tudo o que o homem fora forçado a suportar neste mundo? Pois Deus leva uma vida muito protegida, diziam.De modo que cada um desses grupos enviou o seu líder, escolhido por ter sido o que mais sofreu. Um judeu, um negro, uma pessoa de Hiroshima, um artrítico horrivelmente deformado, uma criança talidomídica. No centro da planície tomaram conselho uns com os outros. Finalmente estavam prontos para apresentar o seu caso.Antes que pudesse qualificar-se para ser juiz deles, Deus deve suportar o que suportaram. A decisão deles foi que Deus devia ser sentenciado a viver na terra — como homem!"Que ele nasça judeu. Que haja dúvida acerca da legitimidade de seu nascimento. Dê-se-lhe um trabalho tão difícil que, ao tentar realizá-lo, até mesmo a sua família pensará que ele está louco. Que ele seja traído por seus amigos mais íntimos. Que ele enfrente acusações falsas, seja julgado por um júri preconceituoso, e condenado por um juiz covarde. Que ele seja torturado.”"Finalmente, que ele conheça o terrível sentimento de estar sozinho. Então que ele morra. Que ele morra de tal forma que não haja dúvida de que morreu. Que haja uma grande multidão de testemunhas que o comprove."E quando o último acabou de pronunciar a sentença, houve um longo silêncio. Ninguém proferiu palavras. Ninguém se moveu. Pois, de súbito, todos sabiam que Deus já havia cumprido a sua sentença.

A resposta é mais clara do que poderíamos imaginar. Deus já havia cumprido a sua sentença.  Stott não quer dizer que Deus só poderia julgar pecadores se sofresse tanto ou mais que eles, mas enfatizar que o caricaturesco Deus indiferente não é real.

“O sofrimento é o megafone de Deus para despertar um mundo surdo.” ³

O sofrimento pode nos polir e fazer com que enxerguemos as mensagens cruciais que tantas vezes ignoramos. 

Quando as inúmeras perguntas surgirem, apontemos para a cruz de Cristo. Antes de buscar qualquer causa, que o Senhor nos dê graça para consolar, que Deus nos ensine a chorar com os que choram, a sofrer com os que sofrem. As feridas de um mundo surdo só poderão ouvir o Deus com feridas, este que Edward Shillito nos fala em seu poema:

Se nunca antes buscamos a Ti, o fazemos então agora;
Seus olhos são chamas no escuro, nossas estrelas matrizes;
Precisamos ver os espinhos, a dor que em Ti se ancora,
Precisamos ter a Ti, ó Jesus das cicatrizes.

Os céus nos assustam; quanta calma neles há!
Andamos por todo o universo, e lugar nosso não encontramos;
Onde está o bálsamo? Nossas feridas doem sem cessar;
Senhor Jesus, pelas Tuas cicatrizes, por Tua graça gritamos!

Se, fechadas as portas, Tu vens em segredo,
Apenas mostre as mãos, aquele Seu lado e creremos;
Hoje, sabendo o que são as feridas, já não temos medo
Mostre-nos as Tuas cicatrizes, cuja marca conhecemos.

Os outros deuses eram fortes, mas fraco vimos Tu ficar;
Eles cavalgaram, e Tu cambaleaste em dor;
Mas, às nossas feridas, somente as de Deus podem falar
E nenhum outro deus tem feridas, apenas Tu, ó Senhor. *


Juliany Correia
__________________
¹ GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
² STOTT, John. A cruz de Cristo. São Paulo: Editora Vida, 2006.
³ LEWIS, C. S. O problema do sofrimento. São Paulo: Editora Vida, 2009.

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