Quando o justo sofre e o ímpio prospera


A tragédia é um gênero teatral que explora com finalidades artísticas um desejo inato no ser humano: o desejo de justiça, o qual pode ser, grosso modo, colocado assim: os maus devem sofrer as punições de seus erros e os bons devem ser recompensados. Esse desejo clama por satisfação e dá origem a um amargo sabor de injustiça quando não é atendido, esse amargo sabor é explorado pelas tragédias. De fato, as emoções dos espectadores são tocadas quando lhes é apresentado o sofrimento dos justos e o sucesso dos ímpios, a obra Romeu e Julieta é o exemplo mais célebre. Ao fim, os personagens que dão nome à peça morrem e deixam o público com o sentimento de “isso não é justo, eles deveriam ter vivido uma linda história de amor” (por favor, entenda que não é spoiler falar o fim de uma história que tem mais de 400 anos). 

Entretanto, o uso do dilema do sofrimento do justo nas obras de arte não gera apenas lágrimas e questionamentos dessa natureza, os artistas podem usar dele para gerar risos também. O sabor da injustiça foi explorado com bom humor através da sátira “Ao desconcerto do mundo”:

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.

Esse poema é do célebre autor português Luís de Camões, nele, o eu lírico, ao se deparar com o dilema do sofrimento do justo, busca ser mau para receber o bem como recompensa das suas atitudes. Todavia, ele finda frustrado por ter recebido justamente aquilo que não queria: castigo. É dessa frustração do personagem que nasce o sentimento jocoso em nós. Ele termina expressando que só para ele o mundo anda “concertado”, isto é, só ele recebe o mal quando faz o mal, só ele recebe as consequências como ele acredita que elas deveriam ser, enquanto isso, os demais continuam recebendo o inverso: os maus recebendo o bem e os bons recebendo graves tormentos.

Se pudéssemos ter uma conversa honesta com o eu lírico do poema o diríamos, em nome de nosso desejo inato de justiça, que nós também acreditamos que as coisas deveriam ser como ele acredita e que o mundo está de fato desconcertado. Algo bagunçou a ordem natural das coisas, algo desconcertou o mundo, até mesmo santos homens do passado consideraram em algum momento ideias como a do personagem inominado de Camões, a exemplo de um momento de crise que o escritor do Sl 73 viveu.

No Salmo 73, lemos o drama de alguém que diante da prosperidade do ímpio considerou a aparente fartura que eles têm e quase seguiu a atitude do personagem de Camões, os pés do salmista quase “se resvalaram” (Sl 73.2), quase que o salmista opta por agir mal intencionando receber o bem no fim, intencionando ter uma vida próspera como ele observava nos maus. Mas, no fim do Salmo 73 é descrita a redenção do salmista, quando ele parou de refletir como um “embrutecido, ignorante” (Sl 73.22)

É muito comum atualmente surgirem filmes que iniciam por seu fim, nos quais o clímax é apresentado de início com o objetivo de prender o público, nos atos seguintes a história vai para o início da narrativa e é encaminhada de um modo a responder as dúvidas dos espectadores sobre como a trama se desenrolou para chegar até onde foi-lhes apresentado de início. Muito antes dos roteiristas do nosso tempo utilizarem esse recurso, o salmista em algum lugar do Israel antigo o toma e inicia o Sl 73 por sua conclusão: “Com efeito, Deus é bom para com Israel, para com os de coração limpo.” (Sl 73.1)

A conclusão é clara: “Deus é bom para seu povo, os limpos de coração”. A bondade do Senhor se manifesta àqueles que têm ao Senhor como seu Deus. Essa é a verdade que o Sl 73 quer nos apresentar, esse é o clímax da história que nos é apresentado logo de início. Nas próximas palavras do salmista somos levados ao início da linha que conduz até aqui.

Ele passou por um momento de grave crise em sua fé, pouco faltou para que desviasse seus passos, isso porque nutria inveja do sucesso dos maus (v.2-3). O salmista via os ímpios como pessoas saudáveis, livres da aflição comum aos homens, ainda que falassem malícias o povo os ouvia e caminhava por seus conselhos, homens que acumulavam muitas riquezas (v.3-12). O salmista via a si como alguém que inutilmente conservou puro o coração, chega a essa conclusão porque era de contínuo afligido e não consegue ir além disso, pois o próprio refletir sobre sua condição lhe era pesado e angustiante (v.13-16).

Até que o salmista entrou no templo do Senhor e passou a refletir em uma nova perspectiva, ele analisou o fim dos ímpios (v.17). Isso faltou ao eu lírico de Camões, refletir sobre o fim dos ímpios na perspectiva daquele que está sendo guiado pelo Senhor em seu templo.

Enquanto aos olhos humanos os homens maus estão nadando em mares de contentamento, aos olhos do Senhor eles estão sobre lugares escorregadios, prestes a serem de súbito assolados (v. 18-20), tudo que os sustenta sobre o abismo da destruição é a vontade de Deus, como o pastor congregacional Jonathan Edwards escreveu outrora em seu ainda hoje famoso sermão “pecadores nas mãos de um Deus irado”:

“eles estavam sempre expostos à destruição, assim como está sujeito a cair todo aquele que se coloca de pé, ou anda por lugares escorregadios”

O salmista, após considerar o destino dos ímpios, compreende a irracionalidade daqueles que se deixam seduzir pela momentânea prosperidade dos ímpios frente à eterna destruição deles. Enquanto os ímpios estão sobre lugares escorregadios, os limpos de coração têm o Senhor sempre consigo, os sustentando por suas mãos direitas (v.23), sendo guiados com o conselho do Senhor ao longo das suas vidas e, por fim, sendo recebidos na glória (v.24). A bendita esperança do salmista repousa no Senhor, o Único bem que ele tem no céu e prazer que ele tem na terra (v.25).

O Senhor está no seu altíssimo e inabalável trono, por isso a fé do salmista não ruiu e seus pés se desviaram. Ainda que a fé do salmista estivesse sujeita a passar por crises quando o salmista era negligente e deixava sua mente viajar pelos mares que não devia, ele não era destruído, pois era o Senhor quem o sustentava. O Senhor era sua fortaleza, era o Senhor que o guiava com Seu conselho até Seu templo trazendo-o novamente à razão. Ele diz:

“Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre.” Sl 73. 26

O texto termina nos mostrando o porquê da conclusão de seu início, o porquê de dizer que Deus é bom para seu povo ainda que estejamos diante do sofrimento do justo e da breve prosperidade do ímpio: Os que estão longe do Senhor perecem, os limpos de coração têm em Deus bom refúgio (v.27-28)

O eu lírico de Camões é inominado, mas poderia facilmente se chamar Daniel, Sonaly, Juliany, Helen, Thayse, Davi ou o seu nome. Quando nos deparamos com o sofrimento do justo e a prosperidade do ímpio temos, por vezes, nosso senso de justiça colocado em xeque, somos tentados a invejar a breve e aparente prosperidade dos maus, nos esquecendo do destino de destruição daqueles que estão longe do Senhor, esquecendo de Seu cuidado por nós, Seu povo, e das delícias que há em Suas mãos para nós. Nesses momentos, que nos aproximemos do Senhor em humilde súplica por Seu auxílio, que clamemos ao Senhor para que Ele nos faça ver as coisas como elas são, que Ele nos faça refletir no fim daqueles que estão longe e nos privilégio daqueles que estão perto dEle.


Daniel Brito

2 comentários:

  1. Muito bom, é bem verdade que olhamos para o Bem material daqueles que sobejam riquezas e esquecemos que nada se compara com a glória que há de vir. Tudo isso é passageiro, mas o nosso nome escrito no livro da vida, isso é impagável. Tenho por certo que todos passamos por uma situação semelhante, mas assim como foi com o Salmista, tbm foi conosco, Deus nos sustentou no momento de fraqueza da nossa fé tão pequenez.

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