O último inimigo: sobre morte, luto e consolo


A morte é uma velha inimiga do homem. Inevitável, previsível e, ao mesmo tempo, indesejada e evitada. Nas palavras de Augusto dos Anjos ela “sai para assassinar o mundo inteiro, e o mundo inteiro não lhe mata a fome”. Já Fernando Pessoa questiona se o homem não é apenas “cadáver adiado que procria”. Ariano Suassuna, em uma obra que tão bem conhecemos, faz uma declaração por meio do cômico personagem Chicó: “tudo o que é vivo, morre”. De maneira suave, Toquinho canta sobre um mundo que descolorirá: “vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia enfim descolorirá”. E ainda, na sábia declaração do rei Salomão: “há tempo de nascer, e tempo de morrer.” ¹

 

Todas essas vozes literárias nos recordam a fragilidade da vida, seja com crueza ou sensibilidade de palavras. Embora muitas vezes pensemos na morte como parte do curso natural da vida, a verdade é que ela é a terrível consequência do pecado humano. O fato é que não se trata de apenas uma “passagem” para a eternidade, mas um inimigo que será vencido. John Bunyan, em “O peregrino”, faz uma ilustração interessante sobre isso: ao avistarem a porta da cidade celestial, Cristão e Esperança percebem que entre eles e a cidade há um rio muito profundo e sem ponte que precisa ser atravessado. Caso não atravessem, não chegarão à porta da cidade. Os peregrinos atravessam o rio sendo cercados por angústias de morte, ora quase afogando, ora emergindo novamente. Ao longo da travessia, Esperança conforta Cristão, até que chegam ao leito do rio e se despem de toda mortalidade. Apesar de deixarmos este mundo e entrarmos na glória através da morte, ela não é bem-vinda para a natureza.

 

Quando a morte chega, o luto invade a nossa vida e temos que lidar com a ausência, surgem várias questões em nossa mente. Nunca estaremos preparados para lidar com o fim da vida porque a morte é uma consequência que não deveria existir. Ela não só nos separa das pessoas amadas, como também é a marca da maior e pior separação que já existiu: a separação entre Deus e o homem. O luto sempre será desconcertante porque traz à tona o resultado da nossa desobediência. Apesar disso, a palavra de Deus nos garante que a morte será destruída.

 

Há uma passagem muito conhecida no evangelho de João que nos mostra a situação de uma família muito próxima de Jesus após a morte de um de seus membros, Lázaro. Em João 11, lemos que Jesus volta para a Judeia (de onde tinha saído por causa da perseguição dos líderes judeus) dois dias depois de saber que seu amigo Lázaro se encontrava enfermo. Ao chegar, a notícia é de que ele havia morrido há quatro dias. A partir do v. 17 podemos ver mais claramente como Jesus conforta as irmãs Maria e Marta. Inicialmente, Marta vem ao seu encontro com uma declaração de fé no que Jesus poderia ter feito:

 

Senhor, se estivesses aqui meu irmão não teria morrido. (João 11.21)

 

Marta também pensa no momento presente, com um lampejo de esperança:

 

Mas sei que, mesmo agora, Deus te dará tudo o que pedires. (João 11.22)

 

Entretanto, quando Jesus prediz o que estava prestes a acontecer, este lampejo de esperança no tempo presente foca na ressurreição futura:

 

Disse-lhe Jesus: "O seu irmão vai ressuscitar". Marta respondeu: "Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia". (João 11.23-24)

 

Após isso, Jesus faz uma declaração que podemos considerar como central no texto: Ele é a ressurreição e a vida. Tal declaração arranca de Marta uma confissão:

 

Sim, Senhor, eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo. (João 11.27)

 

O encontro com Maria acontece de forma diferente. Ela havia ficado em casa, mas logo que Marta avisou que Jesus queria vê-la, levantou-se rapidamente e foi ao seu encontro. Maria disse o mesmo que Marta havia falado, prostrando-se aos pés de Jesus. Os versículos posteriores nos mostram que Jesus perturbou-se e chorou, não apenas pela morte do seu amigo, mas também pela incredulidade dos que estavam ao seu redor. ²

 

Os quatro dias que já haviam passado aniquilariam qualquer dúvida relacionada à veracidade do milagre. O mestre chama Lázaro novamente à vida, e ele obedece. Depois da ressurreição de Lázaro, muitos creem em Cristo, mas outros se organizam para tramar a sua morte.

 

Há muitas coisas que podem ser extraídas desse relato, mas gostaria que você considerasse algumas. A atitude das irmãs nos mostra que há diferentes maneiras de lidar com o luto. Enquanto Marta mostra-se mais agitada e ativa diante da situação, Maria demonstra uma atitude mais emocional. Elas fazem a mesma declaração e estão na mesma situação de vulnerabilidade e tristeza, mas têm atitudes diferentes. Observar isso nos faz atentar para o fato de que não podemos mensurar a dor do luto pela forma que as pessoas lidam com ele: algumas se retraem, outras extravasam; algumas se questionam constantemente, outras se entristecem de forma anestésica por um longo período; algumas tentam não pensar na perda, outras pensam demasiadamente. As pessoas são diferentes e reagem de formas diferentes diante de uma mesma situação.

 

A passagem de João 11 não é apenas um relato de mais um milagre. Como todas as vezes em que realiza algo, o Senhor nos chama atenção não apenas para o fato em si, mas para quem Ele é (v. 25 a 27). Além disso, Ele nos mostra que não é indiferente à nossa dor. O Deus do universo, que um dia enxugará as lágrimas de cada um de seus filhos de uma vez por todas, chora com pessoas enlutadas, lamenta a perda de um amigo querido e consola sua família.

 

Como aquelas irmãs, se você perdeu alguém, sabe muito bem o quanto é dolorido. Tenha em mente que o Senhor se importa com tudo o que está acontecendo e conhece a desestrutura de suas emoções. Não tenha vergonha de achegar-se a Ele com suas dúvidas, não se prive de chorar o quanto for necessário e buscar conforto naquele que entende o seu pesar. A morte não era pra ser e Cristo nos dá esperança de que um dia ela não mais será. Ele nos libertou da morte espiritual, nos dando vida em si mesmo, e breve será o momento em que poderemos bradar:

 

"Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?"  (1Coríntios 15:55)


Muitas pessoas não estão lidando com o luto diretamente, mas estão vendo pessoas próximas perder seus entes. Precisamos pedir que Deus nos ajude a agir com misericórdia e sabedoria diante de dias tão difíceis. Que possamos nos abster de mensurar a dor das pessoas ou simplesmente dar-lhes uma explicação no momento de dificuldade. Se não estamos próximos, que estejamos presentes da maneira que for possível. Lamentemos, fiquemos em silêncio, choremos, mas não ignoremos os corações dilacerados pela perda.

 

“Nós não nos entristecemos como os demais, que não têm esperança, mas, ainda assim, nos entristecemos. A morte não é uma passagem benigna para a felicidade, mas um inimigo terrível tentando nos manter na sepultura. O aguilhão da morte é removido, mas sua mordida permanece.” ³

 

Que o Senhor nos dê sensibilidade para consolar e chorar com os que choram. Nos últimos meses, temos visto com maior intensidade e tristeza os mortos se multiplicarem pelo mundo. O luto, de perto e de longe tem nos assolado. Como igreja de Cristo, que enxerguemos o sofrimento de forma realista, reconhecendo a fatalidade a que estamos sujeitos e manifestando compaixão aos enlutados. Logo, o autor da vida, que é a própria vida, sujeitará todos os inimigos debaixo de seus pés, incluindo a morte.  Para nós, ela pode ser o “único mal irremediável”, mas para o Senhor é uma inimiga com derrota certa.

 

Juliany Correia

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¹Respectivamente:

Poema negro – Augusto dos Anjos;

Fernando Pessoa em “Mensagem”, disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000004.pdf

Trecho do Auto da Compadecida – Ariano Suassuna.

Música Aquarela – Toquinho

² CARSON, D. A. O comentário de João. São Paulo: Shedd Publicações, 2007.

³ HORTON, Michael S. O aguilhão da morte é removido, mas sua mordida permanece. In: GUTHRIE, Nancy. Antes de partir: encarando a morte com confiança corajosa em Deus. São José dos Campos - SP: Editora Fiel, 2013.

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